A nova proposta da emenda constitucional da reforma administrativa traz, entre outros pontos, uma alteração que pode transformar profundamente a magistratura: a extinção da aposentadoria compulsória como sanção disciplinar aplicada a juízes que tenham cometido ilícitos. Pela nova redação, o magistrado não mais seria afastado com proventos proporcionais ao tempo de serviço (aposentadoria compulsória), mas poderia ser diretamente demitido [perda do cargo] em um processo administrativo disciplinar (PAD).
Dessa maneira, a proposta extingue a vitaliciedade dos magistrados, uma das garantias fundamentais para o exercício da judicatura, eis que, na redação da Constituição, após dois anos de efetivo exercício na função, os magistrados só podem perder o cargo mediante sentença judicial, transitada em julgado (artigo 95, I, CF) [1]. O tema é tormentoso.
De um lado, a sociedade enxerga a aposentadoria compulsória como “prêmio” ao juiz faltoso, que mesmo punido continuaria recebendo proventos. De outro, há quem alerte para o esvaziamento da vitaliciedade, uma das principais garantias da magistratura e, em última instância, da própria sociedade.
Garantia institucional – A constituição prevê que, após dois anos de exercício, o magistrado adquire vitaliciedade, só podendo perder o cargo por sentença judicial transitada em julgado (artigo 95, I, CF) [1]. Essa garantia não é um privilégio pessoal, mas um instrumento de independência funcional, blindando o juiz de pressões políticas e de retaliações administrativas. A aposentadoria compulsória, como sanção, foi concebida justamente para equilibrar dois valores: a necessidade de punir condutas ilícitas e, ao mesmo tempo, preservar a independência judicial contra o risco de perseguições arbitrárias.
É preciso desfazer um equívoco recorrente no debate público: a aposentadoria compulsória não é integral; o magistrado punido recebe proventos proporcionais ao tempo de serviço. Além disso, não há devolução das contribuições previdenciárias recolhidas, pois a contribuição social tem caráter solidário e não funciona como poupança resgatável. Portanto, não se trata de “prêmio”, mas de um benefício reduzido, com natureza sancionatória, que já implica perda financeira significativa.
Finalmente, se o ilícito — que levou à aposentadoria compulsória — for também infração criminal — o que ocorre em muitos casos —, o magistrado será processado nessa área, cuja decisão judiciária poderá decretar-lhe a perda do cargo (artigo 92, I, CP) [2]; sem embargo, a sentença, numa ação de improbidade administrativa, pode decretar a perda de cargo do magistrado que tenha agido dolosamente (Lei 8.429/92) [3]. A discussão não se limita ao regime disciplinar da magistratura. A vitaliciedade integra a própria lógica da separação dos poderes (artigo 2º, CF) [4], cláusula pétrea da constituição (artigo 60, §4º, III, CF) [5], que não pode ser abolida (tendente a abolir) por emenda.
As garantias da magistratura — vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios (artigo 95, CF) [1] — existem em benefício da sociedade, e não do juiz individualmente. São mecanismos que asseguram um Poder Judiciário independente, capaz de decidir contra as pressões políticas ou econômicas. Permitir que um magistrado seja demitido por simples PAD significaria fragilizar a separação dos poderes, e submeter a função jurisdicional a ingerências administrativas, quiçá políticas, incompatíveis com o regime constitucional.
Risco – O Estado Democrático de Direito (artigo 1º, CF) [6] repousa sobre a confiança de que o Poder Judiciário atuará com imparcialidade e independência: se magistrados puderem ser afastados por pressões administrativas, ou políticas, abre-se espaço para perseguições contra juízes incômodos; um Judiciário vulnerável deixa de ser barreira contra abusos dos outros poderes; a sociedade que, num primeiro momento, pode ver a medida como um avanço, acabará privada da proteção que só um Judiciário independente pode oferecer.
A insatisfação popular é legítima; parece injusto que alguém punido continue a receber proventos do Estado. Mas o debate precisa ser mais consentâneo à realidade, pois a aposentadoria compulsória já é proporcional, não há devolução das contribuições sociais recolhidas à União e ela representa perda real de direitos do magistrado. Extinguir essa garantia não soluciona o problema da impunidade, mas ameaça a independência judicial, com consequências graves para toda a coletividade.
A crítica popular de que o juiz punido é “premiado” não resiste a uma análise técnica. A aposentadoria compulsória já tem caráter sancionatório, é proporcional e não devolve contribuições. Mais do que abolir garantias constitucionais, é necessário aperfeiçoar os mecanismos de responsabilização — tornando os processos disciplinares mais céleres, transparentes e eficazes.
Eliminar a aposentadoria compulsória pode atender ao clamor imediato, mas abre caminho para extinguir a vitaliciedade, fragilizar a separação dos poderes e o próprio regime democrático de direito. Garantias da magistratura não pertencem aos juízes, mas à sociedade que precisa de uma justiça independente. Tudo o que se expôs aqui se aplica aos membros do Ministério Público, pois têm funções similares às da magistratura, com as mesmas garantias constitucionais (artigo 128, §5º, CF) [7].