Um dos versos de Eu Também Vou Reclamar, composta por Raul Seixas e Paulo Coelho e gravada no álbum Há 10 Mil Anos Atrás (1976), diz: “Entro com a garrafa de bebida enrustida / porque minha mulher não pode ver”. Esse era um dos truques de Raul Seixas para disfarçar seu alcoolismo, doença crônica que, segundo dados do Ministério da Saúde, atinge 20,8% da população brasileira, algo em torno de 43,9 milhões de pessoas.
Glória Vaquer, sua mulher na época, até tentava enfrentar o problema, proibindo o marido de sair com dinheiro, mas não adiantava: ele pedia fiado nos bares e restaurantes da vizinhança. No último dia 28 de junho, Raul Santos Seixas fez aniversário. Se estivesse vivo, teria completado 80 anos. A data foi comemorada com livro, série e exposição.
Em Eu Sou Eu Fui Eu Vou – Uma Biografia de Raul Seixas (Valsa dos Cogumelos, 2025), o jornalista e escritor Rogério Medeiros lembra da ocasião em que Raul convidou o irmão Plínio, quatro anos mais novo, para jantar em um restaurante do Rio de Janeiro, onde morava. A toda hora, Raul pedia licença, se levantava da mesa e ia até o banheiro. Numa dessas vezes, Plínio, intrigado, seguiu o irmão. No banheiro, descobriu que Raul tinha pedido a um dos garçons para deixar uma dose dupla de vodca na pia. Plínio não pensou duas vezes: pegou o copo e o esvaziou. Pego em flagrante, Raul sorriu amarelo.
“Nunca me senti tão mal”, escreveu o cantor em 31 de setembro de 1987, numa das incontáveis vezes em que esteve internado na Vila Serena, uma clínica de reabilitação em São Paulo. “Foi uma experiência terrível”.
Bomba-relógio – Raul Seixas foi casado cinco vezes: Edith Wisner, Glória Vaquer, Tânia Menna Barreto, Ângela Costa e Lena Coutinho. Duas delas escreveram livros de memórias relatando, entre outras curiosidades, os perrengues que viveram ao lado do artista. Em Pagando Brabo – Raul Seixas na Minha Vida de Amor e Loucuras, escrito em parceria com Tiago Bittencourt, Tânia Menna Barreto conta que os dois gostavam de passar a noite em hotéis.
A primeira coisa que Raul fazia, ao abrir os olhos pela manhã, era ligar para o bar e pedir várias destiladas – suas favoritas eram Bourbon Four Roses e Jack Daniels. “Era esse o seu café da manhã”, diz Tânia. Em outro trecho do livro, ela afirma que alguns empresários se aproveitavam da dependência química do cantor para pagar o cachê de seus shows com bebida alcoólica.
Certa noite, minutos antes de fazer um show em Fortaleza, no Ceará, Raul Seixas teve uma crise aguda de hepatite. Passou mal no camarim e chegou a desmaiar no palco. Foi levado às pressas para um hospital. Indagada sobre como Raul Seixas estaria hoje, aos 80 anos, Tânia crava: não estaria. “Não tinha como ele se manter vivo por muito tempo”, lamenta.
Levantamento de copo – Em Coisas do Coração – Minha História com Raul (Ubook, 2020 – clique para comprar), escrito a quatro mãos com Toninha Buda, Kika Seixas (nome artístico de Ângela Costa) afirma que, de 1979 a 1984, Raul Seixas foi internado três vezes – numa delas, para remover parte do pâncreas. Mãe da DJ Vivi Seixas, a caçula das três filhas do cantor, hoje com 44 anos, a idade do pai ao morrer, Kika conta que, noutra ocasião, matriculou o marido numa academia de ginástica. Em menos de meia hora, ele já estava de volta. E o mais curioso: sem uma gota de suor!
“Raul, como foi a aula?”, perguntava ela. “Legal, o professor é muito atencioso”, despistava ele. Três semanas depois, Kika não resistiu à curiosidade e, a exemplo de Plínio, também resolveu matar a charada. Na academia, apurou que o marido, em vez de fazer musculação, tomava cerveja na lanchonete. “Os únicos exercícios que ele fazia eram as duas ‘exaustivas’ caminhadas de três minutos cada, ida e volta, e algumas séries de alterocopismo”, ironiza a ex- mulher, numa alusão à modalidade esportiva favorita dos bebedores compulsivos: o “levantamento de copo”.
Por essas e outras, Kika tomou algumas medidas drásticas, como não ter bebida em casa ou restringir as saídas do marido. De nada adiantou. “Ele se trancava no banheiro para tomar o álcool de limpeza que eu comprava no supermercado”, desabafa no livro.
Tente outra vez- Fundador do primeiro e único fã-clube oficial de Raul Seixas, o Raul Rock Club, o produtor musical Sylvio Passos conviveu com o ídolo de 1981 a 1989. Foi ele quem, ao lado de Kika e Vivi, cederam os mais de cem objetos da exposição Baú do Raul, em cartaz no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) desde sexta-feira, 11. Foi ele também quem prestou consultoria a Paulo Morelli, o criador e diretor da série Eu Sou, do Globoplay.
“Tive dois pais: o biológico, José Corrêa dos Passos, e o intelectual, Raul Seixas. Infelizmente, os dois morreram do mesmo mal: o alcoolismo. Meu pai biológico aos 49 anos e o intelectual, aos 44”, lamenta Passos, que era chamado de “Sylvícola” por Raul Seixas, o “pai intelectual”.
Diagnosticado com diabetes e hipertensão, Raul Santos Seixas morreu no dia 21 de agosto de 1989. No atestado de óbito, consta pancreatite crônica, hipoglicemia e parada cardiorrespiratória (PCR). “Houve um tempo em que o limite de uma dose por dia para mulheres e duas para homens era considerado de baixo risco. Uma dose padrão seria o equivalente a uma taça de vinho (150 ml), uma latinha de cerveja (350 ml) ou uma dose de destilado (40 ml)”, explica o médico Luciano Stancka, que tratou de Raul Seixas em seus últimos meses de vida. “Não há mais limite seguro para o consumo de álcool. O mais seguro é não consumir”, acrescenta.
“O alcoolismo é uma doença crônica, progressiva e multifatorial que, muitas vezes, é invisibilizada ou romantizada, principalmente no meio artístico. Talento e genialidade não protegem ninguém da força destrutiva do álcool”, alerta Stancka.
“O alcoolismo tem tratamento, mas não tem cura. Tem controle. É preciso olhar para o vício sem julgamento, mas com responsabilidade. Cada dia de sobriedade é uma batalha vencida”. Só em 2022, 21,3 mil brasileiros morreram em decorrência do consumo excessivo de bebida alcoólica – são duas mortes a cada 60 minutos no país. Em caso de necessidade, o grupo Alcoólicos Anônimos oferece ajuda gratuita.