O Antagônico publica abaixo um artigo, da lavra de Marc Dourojeanni, consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. No texto, Marc traça um retrato três por quatro da Cúpula da Amazônia, realizada semana passada em Belém. Eis o texto:
A reunião dos oito países que integram a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), complementada com uma longa lista de convidados, inclusive de outros continentes, encerrou-se em 9 de agosto com a assinatura da Declaração de Belém pelos presidentes dos países membros. Este documento é o principal resultado da chamada Cúpula da Amazônia, essencialmente organizada pelo Brasil. A Declaração de Belém contém nada menos que 113 objetivos e princípios transversais.
Acredito não errar ao afirmar que ninguém esperava grande coisa desta reunião feita às pressas. Bem sabido é que ela faz parte da agenda pessoal do presidente do Brasil, como demonstrou seu exagerado protagonismo no evento e, sendo assim, o silêncio dos outros revelou, na tal Declaração, suas reticências às propostas. O resultado é primordialmente “mais do mesmo”, neste caso agravado por não ter sequer mencionado temas absolutamente cruciais e concretos, que não requeriam da prolífica redundância vertida no texto.
Entre esses temas fundamentais está o impacto que as políticas de integração viária e de geração de energia elétrica têm, respectivamente, sobre os ecossistemas florestais e aquáticos. Não se escreveu uma palavra sobre esses temas, apesar da unanimidade em colocá-los como primordiais para definir o futuro do desmatamento e da degradação de bosques e ambientes aquáticos na região. Mas, também, onde ficaram as conversas sobre as ferrovias? E as hidrovias? Acaso não se supõe que essas são opções menos agressivas ao ambiente?
Porém, de tudo, o que mais impressiona é a ausência de menção e de decisões ou recomendações sobre dois fatos básicos com cifras impressionantes: (i) um terço da Amazônia é terra indígena e, (ii) outro quarto da mesma é área natural protegida em unidades de conservação. Ou seja, está-se falando de mais da metade do espaço amazônico.
Por um lado, é verdade que há muito sobre os povos indígenas na Declaração. Mas não escapará a ninguém, lendo-a atentamente, que são declarações líricas, expressões de boas intenções repetitivas e remanejadas, quase ocas. E também não se pode ignorar que, apesar de os indígenas serem os responsáveis diretos pelo futuro de um terço da Amazônia, não há menção alguma sobre como ajudá-los a defender seus territórios, oferecer-lhes serviços de qualidade que merecem e, em especial, dar-lhes a assistência técnica e creditícia necessária para o seu desenvolvimento em suas próprias terras.
Por outro lado, o termo “área protegida” (unidade de conservação no Brasil) sequer é citado ao longo do texto. Ou seja, pela primeira vez, em um evento sobre “salvar a Amazônia” sequer se menciona o que, até agora, tem se mostrado a ferramenta mais eficaz para defender o patrimônio biológico daquela parte do mundo. O tema é completamente ignorado, embora em nenhum dos países da região essas áreas protegidas recebam o mínimo apoio necessário para se manterem operacionais diante das ameaças crescentes que, muitas vezes, são originadas pelos próprios governos.
Também impressiona o extremo economicismo revelado pelo documento acobertado pela palavra mágica “desenvolvimento sustentável”. Isso é óbvio, mesmo na menção de princípio contra a “proliferação de medidas comerciais unilaterais que, baseadas em requisitos e padrões ambientais, resultam em barreiras comerciais…”, afirmação esta que não impede que no parágrafo seguinte se insista que esses mesmos países doadores cumpram suas ofertas de financiar a conservação da Amazônia. Lendo atentamente cada item, inclusive na seção dedicada à proteção das florestas, observa-se a noção subjacente de usar, aproveitar, desenvolver, crescer, aumentar, produzir mais… “sustentavelmente”. Não é bom augúrio para as florestas. E tampouco se fala coisa alguma sobre o enorme potencial disponível para elevar a produtividade nas terras já desmatadas, o que, segundo os cientistas, tornaria desnecessário derrubar mais árvores durante muitas décadas a mais.
A Declaração revive uma série de iniciativas antigas que nunca prosperaram ou que não perduraram por falta de financiamento, como a própria OTCA, que está meio morta faz décadas, e tantas outras, como as antigas UNAMAZ [Associação de Universidades Amazônicas], BIOMAZ e PARLAMAZ. Não se insinua que não servem ou que não podem ser úteis. Pelo contrário. Mas, para colher resultados dessas iniciativas, os governantes deveriam começar por falar dos compromissos financeiros que cada país vai assumir. Algo que obviamente ficou para um futuro incerto. Embora também não seja novidade, nesta ocasião parece que mais importância foi dada às questões de coordenação policial e quem sabe militar, para travar a circulação de drogas, ouro, armas e animais selvagens. O controle do espaço aéreo usado por bandidos é altamente desejável e, claro, já foi tentado há mais de duas décadas sem sucesso, mas talvez desta vez…
Embora se diga que este foi o “mais inclusivo” dos encontros amazônicos, é preciso reconhecer que apesar do clamor geral, os governantes nem sequer conseguiram acertar uma data para acabar com o desmatamento ilegal. E esse desmatamento “ilegal” mal depende de leis e regulamentos cada dia mais flexíveis. Se se quer evitar chegar ao já famoso ponto de não retorno, o importante é controlar o desmatamento, o verdadeiro. Enfim, para quem acompanha essa mesma coisa há tantas décadas, mesmo estando pessoalmente muito próximo da OTCA desde a sua criação, esse encontro, além de sua pompa inusitada, é decepcionante. Mais do que os anteriores.