Deu no UOL. Quem visita Cametá, a 150 km de Belém (PA), é surpreendido por uma sirene que toca seis vezes em diferentes momentos de todos os dias — e se tornou um traço peculiar da cidade.
A tradição já dura cinco décadas, o que explica porque o tal “chamado” é considerado parte da rotina dos moradores, ajudando-os a orientar as atividades do dia a dia. Seu uso também conta a história da vida por lá: durante os anos da ditadura militar, o som foi associado ao toque de recolher e, desde a pandemia de covid-19, tornou-se também uma forma de homenagear as vitimas da doença. Afinal, de onde ela veio?
A sirene foi doada à Secretaria de Transportes, Terras e Obras (Settob) em 1972 e permanece desde então na sua sede, em um prédio no centro da cidade. Instalada originalmente para alertar funcionários de órgãos públicos apenas aos horários de entrada e saída, hoje ela dispara sempre às 6h, 7h, 12h, 17h, 18h e 22h — o que a tornou uma espécie de relógio local. Naquela época não havia muitos relógios e os funcionários se guiavam por uma campainha improvisada, feita com a batida de duas barras de ferro.
“Meu pai ganhou a sirene de brinde ao comprar uma caçamba em Belém para realizar obras no município. Desde então, virou tradição”— diz Antônio Sassim, funcionário da Settob e filho do então diretor de obras de Cameta, Dias Sassim. Pouco a pouco, os toques foram incorporados à rotina da comunidade, que passou a se orientar pelo som que sinalizava horários para acordar, sair para o trabalho, o intervalo do almoço e o encerramento do expediente.
Por conta do período de sua chegada, no meio da ditadura — que ocorreu entre os anos de 1964 e 1985 — a última disparada da sirene no dia foi associada ao toque de recolher imposto pelos militares.É importante lembrar: com a instituição do Ato Institucional (Al-5) em 1968, foram decretadas diversas proibições pelo governo da época, como a realização de reuniões políticas e a circulação de pessoas nas ruas após a meia noite, que eram patrulhadas pela polícia.
Apesar disso, o historiador e ex-diretor do museu de Cametá, Alexandre Pantoja, explica que a instalação da sirene não teve ligação direta com o regime militar. Seu propósito era oferecer um serviço, informando a população sobre o desligamento da energia na cidade, que ainda era abastecida por uma termelétrica. “O objetivo era avisar as pessoas para se recolherem nas suas casas em segurança, sem passar pela escuridão, mas isso acabou ficando no imaginário da cidade, apesar de não haver nenhuma relação.”
Hora de terminar o namoro – O último toque da sirene também representava a hora das crianças e adolescentes voltarem para casa. Como toda a cidade do interior à época, a praça era o ponto de encontro — especialmente dos casais de namorados, que ouviam dos pais que a sirene marcava o fim da noite dos apaixonados.
Essa era a rotina do biomédico Nonato Caldas, de 70 anos, e de Graciema Gaia, de 66 anos. Casados há 47 anos, eles tiveram o namoro guiado pela sirene. « Na minha juventude era assim, a mãe dela Iva logo que quando apitasse a sirene, às 21 horas, era a hora de voltar para casa. Funcionava como tolerância. Se apitasse e a menina não voltasse pra casa, já sabia que a “peia ia comer” e muitas apanhavam porque não voltavam a tempo.”
A Sirene é operada pelo mesmo funcionário há 30 anos A tradição do toque da sirene em Cametá passa pelas mãos do mesmo operador há 30 anos. José Izan da Silva Santos, de 67 anos, conhecido como “Gato Paraíba”, é o responsável por garantir que ela seja disparada diariamente.
Filho de uma paraibana e um paraense, ele conta que nasceu em Belém e acabou retornando à cidade natal de seu pai para trabalhar, mas nunca imaginou que assumiria essa função. “Comecei trabalhando nas ruas, em caçamba, depois fui vigia da Settob, até que fui aprendendo a trabalhar com a sirene.” Além de tocá-la nos horários pré-determinados, José Izan ainda é responsável por empregá-la em eventos e em homenagem a cortejos fúnebres que passam na porta da Secretaria de Transportes.
Para cada um deles, há um rito específico. “Sempre que é horário determinado, é só uma ‘viradinha’, mas se for por morte de alguém ou quando é alguma procissão ou evento, tem que ser de três a quatro viradas”, ensina. Até 2020, as homenagens aos mortos com o toque da sirene eram restritas a autoridades, mas isso mudou depois da covid-19. 6.
“Na pandemia, usamos muito a sirene porque perdemos muitos amigos, inclusive alguns que trabalhavam na Settob. A sirene apitou muitas vezes e, quando isso acontecia, as pessoas já sabiam o motivo. Independente do motivo por trás do toque, a tradição desperta a curiosidade de quem visita a cidade e leva turistas à sede da Secretaria para conhecer seu funcionamento”, conta o operador.
“Tem muita gente que vem aqui, que acha bonito. Eu conto a história, eles fazem vídeo, tiram fotos. Fico muito feliz em poder fazer esse trabalho, pois acho que está ajudando a cidade”, comemora.