Sonho Americano
Parauapebas. Canaã dos Carajás. As Receitas Milionárias Multiplicadas. A Versão do “Sonho Americano”
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O AntagônicoÀ primeira vista, Parauapebas e Canaã dos Carajás, no sudeste do Pará, vivem a versão paraense do “sonho americano”. Desde a década passada, quando a Vale aumentou suas operações no Norte do país e o Pará cresceu na disputa com Minas Gerais pela hegemonia da mineração brasileira, essas cidades viram suas receitas anuais multiplicarem (por 12 em Canaã e por 2 em Parauapebas) e saltarem para o patamar de R$ 2 bilhões, realidade restrita a só cerca de 70 municípios brasileiros. É muito dinheiro para uma cidade de 268 mil habitantes, no caso de Parauapebas, e de 77 mil, no de Canaã.
O PIB per capita da primeira é de R$ 227 mil, e o da segunda, R$ 895 mil -o segundo maior do Brasil. Para comparação, o PIB per capita do país é de R$ 50 mil. Parauapebas e Canaã dos Carajás também têm os maiores PIBs do estado, na frente até da capital, Belém. É tanto recurso que, na classe política, a disputa para ser vereador dessas cidades é mais acirrada que a de deputado estadual. Por uma justificativa óbvia: cada um dos 15 vereadores de Parauapebas recebeu neste ano R$ 4,95 milhões em emendas parlamentares e cada um dos 13 de Canaã, R$ 11,6 milhões. Em contrapartida, um parlamentar estadual recebeu R$ 4 milhões.
A bonança fica óbvia quando se chega a esses dois municípios. Em uma região marcada pela pobreza, pela desigualdade e pela falta de serviços básicos, é claro quando o carro se aproxima das duas cidades: vias duplicadas, iluminação e sinalização boas e muitos hotéis, além de placas indicando as direções das minas de minério de ferro e cobre da Vale. O custo de vida também é bem superior, chegando próximo —e, em alguns casos, ultrapassando- o de grandes capitais, como São Paulo. Entre os habitantes, há paraenses, mas é comum se esbarrar com maranhenses, mineiros, tocantinenses e goianos.
As cidades estão cheias de pessoas de fora do estado, inclusive entre quem as comandam. Em Canaã, a prefeita é da Paraíba, e, em Parauapebas, do Rio Grande do Sul. Por esse motivo, nas ruas, o sotaque paraense não é hegemônico; nas rádios, o sertanejo supera o brega e, nos restaurantes, o feijão-tropeiro é mais comum que o tucupi. Uma influência dos mineiros transferidos pela Vale para a região na década de 1980, quando Canaã e Parauapebas ainda faziam parte de Marabá.
Parauapebas e Canaã estão lotadas de pessoas que saíram de vários cantos do país em busca de emprego; a dinâmica, em devidas proporções, lembra a dos anos 1980 em Serra Pelada, também na região. Não à toa, Canaã foi a cidade que mais registrou crescimento populacional no último Censo, aumento de quase 200% em relação a 2010, isso sem contar as 20 mil pessoas que o município diz terem chegado entre 2023 e 2024. Aldiran Santos Freitas, 43, por exemplo, largou há cinco meses sua vaga de concursado como motorista da Prefeitura de Marabá, cidade polo na região, para buscar um emprego em Canaã.
Na cidade vizinha, ele recebia por mês R$ 3.500; hoje trabalha como motorista de aplicativo, enquanto busca um emprego que, segundo ele, possa pagar R$ 6.000. “Isso é o que eu ganhava entre 2015 e 2018, quando vim pela primeira vez para Canaã trabalhar como operador. Naquela época, o S11D estava em construção”, diz, em referência ao complexo minerário da Vale, um dos mais modernos no mundo na extração de minério de ferro e em operação desde 2016.
“Canaã está em desenvolvimento e sendo planejada para 200 mil habitantes, o que faz dela uma das cidades que mais têm emprego no Brasil.” Ele está certo.
De acordo com dados do Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), Canaã abriu uma vaga de emprego a cada 12 habitantes em 2023. Em São Paulo, foi uma vaga a cada 90; no Rio, uma a cada 88, e, em Belo Horizonte, uma a cada 75. Quem administra essas cidades, porém, tenta controlar seu crescimento; até porque a bonança é volátil. Tanto em Canaã quanto em Parauapebas, os royalties da mineração, atrelados ao preço de venda do minério de ferro, representam metade da arrecadação -com os impostos indiretos, a dependência do setor chega próximo a 90%. Assim, épocas de vacas magras para as mineradoras significam épocas de vacas magras para os municípios.
Foi assim em Parauapebas durante a queda do preço do minério de ferro em 2015. Naquela época, a cidade viu sua receita cair 20% em relação a 2013. Já em 2021, quando a tonelada do minério superou os US$ 200, a arrecadação encostou nos R$ 3 bilhões. “Mudou o cenário internacional, mudou também Canaã dos Carajás; quando alguma coisa na China acontece, reflete aqui no município. Isso é muito desafiador, porque dependemos muito do mercado externo, além de chegar gente aqui todos os dias, o que afeta o nosso planejamento”, diz a prefeita de Canaã, Josemira Gadelha -reeleita com 80% dos votos válidos.
A volatilidade da cidade, aliás, é uma das principais razões para os problemas de saneamento básico na região, segundo as gestões municipais. Só 12% da população recebe coleta e tratamento de esgoto em Parauapebas. Em Canaã, o índice é de 35%. É comum também faltar água em alguns bairros — não nos em que as Vale aloca seus funcionários, onde em Parauapebas, por exemplo, o acesso é restrito.
O dia a dia das gestões municipais é para evitar que esses locais repitam a lógica de dependência minerária das cidades de Minas Gerais, onde hoje a aproximação da exaustão mineral assusta prefeitos e moradores. Mas a missão é difícil. Parauapebas tentou nos últimos 40 anos, mas até hoje não conseguiu. Os programas de incentivo à chegada de novas indústrias acabaram atraindo empresas ligadas à mineração, e, hoje, quase toda a cidade é dependente do setor.
Em Marabá, cidade da região que também convive com dinheiro desse mercado, ainda que em menor escala, o governo Lula e a Vale chegaram a anunciar em 2011 a criação de uma siderurgia na cidade, mas o projeto não foi para a frente. Já Canaã, mais nova na missão, tem buscado formas distintas. O município criou em 2018 um fundo que recebe mensalmente 5% da arrecadação dos royalties da mineração e banca empresários locais com até R$ 130 mil em empréstimos a juros baixos. Neste ano, R$ 57 milhões foram destinados ao fundo. A iniciativa é inédita, já que hoje nenhuma cidade mineradora -mineira ou paraense- direciona mensalmente uma parcela fixa dos royalties para o desenvolvimento econômico do município.
“O primeiro ano em que Canaã recebeu a bolada da mineração foi em 2019, e nessa época o município não tinha corpo técnico para saber o que fazer com tanto dinheiro. Então, optou-se por zerar a dívida da cidade com a União e, de 2019 em diante, contratou-se uma equipe técnica com ciência de como funciona a estrutura municipal, inclusive de planejamento”, diz Giliad de Souza Silva, professor de economia da Unifesspa (Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará) e coordenador do programa De Olho na Cfem.
O município também faz algo que Parauapebas já faz há anos: custear despesas que originariamente seriam estaduais e federais. Em uma dinâmica que inverte a lógica brasileira, Canaã banca a reforma de suas escolas estaduais e a instalação de universidades federais no município. Já a Prefeitura de Parauapebas é responsável por quase metade dos funcionários da Justiça na cidade, além de bancar um hospital de média e alta complexidade, função geralmente atrelada aos governos estaduais.
“Antes, praticamente não havia escolas do estado, sendo que as tinha funcionavam em prédios nossos e com funcionários nossos. Também precisávamos cuidar da Polícia Militar e Polícia Civil e, por um período grande, também comprávamos os cursos de universidades federais para que a gente pudesse ter, senão não teríamos”, diz Darci Lermen, prefeito de Parauapebas, em seu quarto mandato. Ele foi uma das principais vozes na tentativa de separar a região do Pará no plebiscito de 2011.
A bonança também permite aos municípios pagar salários incomuns para seus servidores. Em 2023, a Prefeitura de Parauapebas gastou R$ 894 milhões com pessoal, e a de Canaã, R$ 280 milhões. A legislação impede que os royalties da mineração sejam direcionados ao pagamento da folha dos municípios, mas abre uma brecha para profissionais da educação, além de aliviar o restante do orçamento para investimentos.
Em Canaã, um professor de educação básica que trabalha dois turnos recebe ao menos R$ 8.500, e, em Parauapebas, R$ 5.800, com uma carga semanal de 40 horas. No estado de SP, em comparação, o salário é de R$ 4.500, e, na capital R$ 3.018, com 30 horas semanais. Oferecer altos salários é a única forma de atrair profissionais qualificados para a região, segundo as gestões municipais. Os salários altos, porém, são só para parte da população. A outra, segue pobre: segundo o governo federal, em Canaã há hoje 9.000 famílias atendidas pelo Bolsa Família e 23 mil em Parauapebas. Isso sem contar os municípios vizinhos, que têm um dos piores índices de vulnerabilidade social do país.
Ainda assim, não há sinais de quando a região deixará de atrair quem busca emprego. “Há novas pessoas que chegam do país inteiro dizendo apenas que este é um lugar de ganhar dinheiro. Em Canaã dos Carajás, por exemplo, não existe laços comunitários nem outra abstração social; é o dinheiro”, diz Charles Trocate, coordenador do Movimento pela Soberania Popular na Mineração. E, se depender do tamanho das reservas minerais hoje em Carajás e do desejo das mineradoras em entrar na região, o “sonho americano” em terras paraenses continuará vivo por muitas décadas.