Exclusivo
A Doméstica. Os 26 Anos Sem Salário. A Sentença e a Indenização
Publicado
2 anos atrásem
Por
O AntagônicoUma mulher de 48 anos, que trabalhou por cerca de 26 anos como empregada doméstica para uma família em Belém, deverá receber R$167 mil a título de indenização e verbas rescisórias por ser mantida em condições degradantes, sem salário, férias ou qualquer benefício de Previdência Social.
A empregadora assumiu, extrajudicialmente, por meio de Termo de Ajuste de Conduta (TAC), o compromisso de pagamento do valor, assim como o cumprimento de obrigações para sanar as irregularidades apuradas durante a fiscalização, realizada neste mês de julho.
A ação faz parte da Operação Resgate II, de combate ao trabalho análogo à escravidão, realizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF); Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Previdência (SIT); Ministério Público do Trabalho (MPT); Polícia Federal (PF); Defensoria Pública da União (DPU) e Polícia Rodoviária Federal (PRF).
O MPT PA-AP recebeu denúncia de que uma doméstica estava sendo explorada há anos, sem receber salário. Diante da situação, o órgão ajuizou ação cautelar visando obter autorização judicial para ingresso na residência. A trabalhadora encontrada é natural do município de Muaná, no arquipélago do Marajó. Ela relatou que veio para Belém em 1996, aos 22 anos, para trabalhar como babá. Não tinha salário fixo, em troca de seu trabalho a família oferecia apenas moradia, alimentação, roupas, remédios e algumas quantias, quando ela pedia, em total desacordo com a Lei.
Ainda segundo a trabalhadora, depois de alguns anos, também passou a desempenhar atividades domésticas e, há cerca de um ano e meio, passou a atuar ainda como ajudante de cozinha, de sexta a domingo, no restaurante de um dos filhos da empregadora. Para isso, recebia R$1.400, porém sem registro na Carteira de Trabalho ou garantia de qualquer outro benefício legal.
Condições degradantes – Durante a fiscalização, a equipe constatou que a vítima estava alojada em uma espécie de quarto utilizado como depósito pela família. As paredes apresentavam infiltrações e havia mofo, poeira e diversos itens espalhados pelo chão, como malas, roupas e materiais de higiene da casa, sem qualquer tipo de armário para que ela pudesse guardar seus pertences no quarto.
O banheiro anexo ao quarto, de igual modo, estava cheio de entulhos, impossibilitando a sua utilização. Diante dos fatos, os fiscais concluíram que estava configurado trabalho análogo ao de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, por conta da situação degradante a que a trabalhadora estava sendo submetida.
“O trabalho escravo doméstico tem uma peculiaridade que é o fato de ocorrer no âmbito residencial, o que dificulta a chegada da denúncia aos órgãos de fiscalização. É importante a sociedade tomar conhecimento dos casos e das consequências da caracterização dessa prática, pois além da repercussão trabalhista, os empregadores poderão responder pelo crime do art. 149 do Código penal”,
explicou a procuradora do Trabalho Silvia Silva da Silva, titular da Coordenadoria Regional de Combate ao Trabalho Escravo (Conaete).
Ainda segundo a procuradora, nesses casos “observa-se sempre um discurso falacioso de que a empregada era considerada da “família” e por isso não recebia salários, nem eram garantidos os direitos trabalhistas mínimos previstos na legislação, como CTPs anotada, salário mínimo, repouso semanal remunerado, férias, 13º salário, recolhimentos de FGTS e INSS, dentre outros. Mas a realidade é que são trabalhadoras exploradas, geralmente, analfabetas ou com grau de escolaridade muito baixo e que têm história de vida muito sofrida, e se tornaram vítimas pela extrema vulnerabilidade”, explicou Silvia Silva.
Além do pagamento da indenização por dano moral individual e verbas salariais rescisórias, que totalizaram R$167 mil, se descumprido o acordo haverá cobrança de dano moral coletivo de R$300 mil reais. A empregadora comprometeu-se ainda a formalizar o vínculo empregatício; assinar a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); pagar o salário mensal integral; respeitar os limites constitucionais e legais de duração da jornada de trabalho (8 horas diárias e 44 horas semanais); conceder descanso semanal e férias anuais remuneradas, entre outros pontos previstos na legislação, sob pena de multa de R$ 5 mil, por cláusula descumprida, e de R$ 100 mil por cada trabalhador submetido a condição análoga à de escravo.
O filho da empregadora, dono do restaurante, também assinou um TAC para fins de legalização do vínculo trabalhista e realização dos recolhimentos fundiários e previdenciários, além do cumprimento de obrigações para sanar as irregularidades, sob pena de multa fixa de R$ 10 mil por ponto descumprido e R$ 1.000 por trabalhador prejudicado.
Fiscalizações – Além da capital paraense, as fiscalizações no Pará ocorreram ainda em fazendas localizadas nos municípios de Água Azul do Norte e Tucumã, onde não houve resgate, mas foram encontradas irregularidades relativas ao meio ambiente de trabalho envolvendo 20 trabalhadores. Os empregadores deverão ser responsabilizados pelas violações de normas trabalhistas. Para a procuradora Claudia Colucci Resende, também atuante na Conaete, quando se pensa em atuação repressiva, as fiscalizações podem ser consideradas um dos mecanismos mais eficazes de combate ao trabalho escravo.
“Ainda que não haja a caracterização de trabalho em condições análogas à de escravo, é possível se aferir, durante as inspeções, a existência de outras irregularidades trabalhistas, como aquelas ocorridas no meio ambiente de trabalho, e também promover uma atuação corretiva. Por fim, é importante salientar que as fiscalizações também possuem um importante caráter pedagógico, no sentido de demonstrar que o Estado está presente, mesmo que nas regiões mais inacessíveis do País”,
explicou Claudia Resende.
Operação Resgate 2 – O caso registrado em Belém é um dos 337 identificados no Brasil, apenas durante o mês de julho, durante a Operação Resgate 2, a maior ação conjunta com foco no combate ao trabalho análogo ao escravo e tráfico de pessoas no país. Todos os trabalhadores terão seus direitos garantidos mediante atuação administrativa ou judicial.
A ação teve início no dia 4 de julho e segue em andamento, de forma conjunta, com a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do Ministério do Trabalho e Previdência, Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF), Defensoria Pública da União (DPU), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF).
Quase 50 equipes estiveram diretamente envolvidas nas inspeções realizadas em 22 estados e no Distrito Federal (AC, AL, AM, BA, CE, DF, ES, GO, MA, MS, MG, MT, PB, PE, PA, PI, PR, RJ, RO, RS, SC, TO e SP). Goiás e Minas Gerais registraram o maior número de resgates. Já as atividades econômicas com maior número de casos no meio rural foram os serviços de colheita em geral, cultivo de café e criação de bovinos para corte.
No meio urbano, chamaram a atenção os resgates ocorridos em uma clínica de reabilitação de dependentes químicos e também situações de trabalho doméstico, este com seis trabalhadoras em cinco estados. Foram resgatadas, ainda, cinco crianças e adolescentes e quatro migrantes de nacionalidade paraguaia e venezuelana. Pelo menos 149 dos resgatados na Operação foram também vítimas de tráfico de pessoas.
Números gerais – Os dados das ações de combate ao trabalho análogo ao de escravo no Brasil estão disponíveis no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, no seguinte endereço: https://sit.trabalho.gov.br/radar/. Há também informações no Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas (smartlabbr.org/trabalhoescravo).
Operação Resgate I – Em 2021, a Operação Resgate efetuou 128 fiscalizações distribuídas em 22 estados brasileiros e no DF. Na ocasião, foram resgatados de condições análogas às de escravo 136 trabalhadores, sendo cinco imigrantes e oito crianças e adolescentes.
Dia Mundial do Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – A data (30 de julho) foi instituída em 2013 pela Assembleia Geral das Nações Unidas – ONU a fim de “criar maior consciência da situação das vítimas do tráfico de seres humanos e promover e proteger seus direitos”. No Brasil, o art. 149-A do Código Penal, inspirado no Protocolo de Palermo, define o crime de tráfico de pessoas, como o ato de agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de servidão; adoção ilegal ou exploração sexual.
Denúncias – As denúncias de trabalho análogo ao escravo podem ser feitas de forma remota e sigilosa no Sistema Ipê (ipe.sit.trabalho.gov.br), criado pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), pelo Disque 100 ou pelo site do MPT PA-AP (www.prt8.mpt.mp.br).