A 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) condenou, por maioria, dois acusados de cometerem crime de redução à condição semelhante à de escravo previsto no art. 149 do Código Penal. O Ministério Público Federal (MPF) havia recorrido da sentença que absolveu os réus por falta de provas, pois entendeu que a materialidade e a autoria dos delitos foram comprovadas.
Segundo consta dos autos, o MPF ofereceu denúncia contra os réus após inspeção do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego na “Fazenda Prainha”, localizada na zona rural de Eldorado dos Carajás, que era utilizada por uma empresa para realização de serviços de extração de areia, cascalho e pedregulho. Na ocasião, os denunciados foram identificados como sócios e responsáveis pela empresa ali estabelecida, bem como pelos serviços prestados.
Durante a fiscalização foram encontrados sete trabalhadores, dos quais dois estavam alojados em condições degradantes, sem instalações sanitárias, em locais sem portas, janelas e com o telhado deteriorado, sem armários para acomodar os pertences nem energia elétrica, água encanada e local adequado para fazerem as refeições.
Além disso, consta da sentença de 1º grau “que os trabalhadores resgatados desenvolviam extração de areia no leito do Rio Vermelho, submersos em uma profundidade de aproximadamente três metros sem que tivessem recebido qualquer tipo de treinamento e, ainda, sem equipamentos adequados e equipe de segurança, cenário que gerava graves riscos à saúde”.
Trabalho degradante
Ao analisar o recurso do MPF, o relator, juiz federal convocado Marcelo Elias Vieira, afirmou que o TRF1 entende que o delito de escravidão contemporânea é imprescritível e está previsto no art. 4º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 8º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e no art. 6º do Pacto de São José da Costa Rica, normativos que têm objetivo de impedir a existência de leis que legalizem a escravidão e de prevenir qualquer tentativa disfarçada de que o sistema seja reintroduzido.
Nesse contexto, o crime de redução à condição análoga à de escravo tem os seguintes modos de execução: submeter alguém a trabalhos forçados, a jornada excessiva, a condições degradantes de trabalho e restringir a liberdade de locomoção de alguém em razão de dívida. O que, segundo o juiz federal, ficou comprovado nos autos em relatório elaborado pelo grupo do Ministério do Trabalho e pelas testemunhas que foram ouvidas.
Quanto à autoria do crime, esta também ficou comprovada, visto que os acusados eram os responsáveis pela empresa que funcionava na Fazenda e tinham o controle sobre as condições de trabalho exercido por meio de um gerente. No caso em questão, a defesa alegou que a situação de trabalho degradante por si só não é o suficiente para caracterizar o crime e que essa situação precisa estar ligada a outras formas de coerção contra os trabalhadores.
Contudo, o juiz federal Marcelo Elias Vieira asseverou que apenas a situação degradante já é suficiente para configurar o crime, não sendo necessário ter outras formas de coerção, conforme precedente já consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial 1.443.133- TO (2014/0063998-6) de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca.
“Demais disso, deve-se ter em mente que o respeito aos direitos humanos é condição mínima para uma vida em liberdade, num contexto de uma sociedade livre, justa e solidária”, enfatizou o magistrado.
Sujeitos de direitos
Diante dessas circunstâncias, o relator entendeu que “a prova coligida aos autos comprova largamente que não se trata de um mero descumprimento da legislação trabalhista; mas sim de um total e completo descumprimento das normas legais” e que “o total desrespeito à legislação trabalhista consiste em criar condições para a existência de relações concretas de caráter degradante para as pessoas que nelas estão envolvidas, como é o presente caso”. Assim, concluiu o magistrado, “condição análoga à de escravo somente tem por significado tratar os sujeitos de direito como se coisas fossem. E a diferença entre o sistema escravista e o constitucionalismo moderno consiste, exatamente, em tratar as pessoas como sujeitos de direitos, pessoas dotadas de direitos humanos, ou seja, direitos mínimos para que as relações sociais sejam dotadas de um mínimo de civilidade. O que, por certo, não ocorreu no caso concreto”.
A Turma, por maioria, acompanhou o voto do relator e deu provimento ao recurso do MPF, reformando a sentença de 1ª instância para condenar os réus a dois anos e 9 meses de reclusão em regime inicial aberto e 54 dias-multa – penas que foram substituídas por duas restritivas de direito com prestação de serviços à comunidade e pagamento de multa no valor de R$ 20 mil.